Perdido num labirinto de indesejada liberdade

Salvador Peres

– Sinto-me perdido!
Tínhamos acabado de nos sentar na esplanada de um café ali à beira do rio. O tom do meu amigo vinha num registo pouco habitual, entre o desalentado e o resignado. Espírito forte, instinto vivaz, avesso a pieguices, adversário da comiseração, não era nada habitual ouvi-lo falar naqueles termos.
– Fiz a semana passada 60 anos. Num dia, tinha o mundo inteiro na mão, a vida toda pela frente; no seguinte, como que pisei uma linha invisível que me transportou para um lugar desconhecido, onde não me consigo reconhecer.
Mantive-me ali a ouvi-lo, sem me atrever a interrompê-lo, interpelá-lo, iniciar um diálogo. Ele falava para um auditório muito mais vasto do que o composto por aquelas duas almas solitárias ali plantadas naquele café à beira-rio. As palavras voavam da sua boca como um coro de vozes
desafinadas, desarmónicas, desconexas, depois de anos de abstinência e silêncio; a sua voz esvoaçava até mim e para além de mim, como um pássaro desorientado, perdido num labirinto de indesejada liberdade.
– O meu chefe veio ontem ter comigo. Entrou pelo gabinete desfeito em sorrisos, com trejeitos que lhe exacerbavam a impostura do rosto, desfiando afectos que nunca lhe conhecera, numa intimidade indesejada e uma conversa estranha sobre “o gozo que nos espera lá fora, quando libertados do fardo do trabalho”.
Nunca na vida ouvira queixas da boca do meu amigo sobre a idade: aquela que há muito deixara para trás, a que ia vivendo na espuma dos dias ou a que haveria de ter um dia, lá para um futuro que ninguém é capaz de descortinar. Tão-pouco lhe ouvira boca fora alusões a um chefe; que teria um chefe, supunha eu, mas, até agora, uma entidade incorpórea, que nunca se insinuara entre nós.
Muito menos tivéramos alguma vez conversas sobre trabalho.
– Prevenido, quedei-me em silêncio, esperando a estocada final. E ele não me desapontou, imprimindo ao solilóquio o guião que trazia bem estudado: “É justo que a fortuna sorria aos que fizeram por a merecer. A empresa não é cega nem surda, e nem, como prova esta minha conversa, muda. E quem manda soube avaliar o alto compromisso que esteve sempre subjacente ao seu desempenho profissional e aquilatar o elevado valor do seu trabalho. Por isso, é com manifesto júbilo que lhe comunico que foi superiormente decidido conceder-lhe a reforma antecipada”.
O grasnar insistente das gaivotas, voando em amplas elipses por sobre as nossas cabeças, interrompeu, por momentos, o monólogo do meu amigo. Olhámos um para o outro. Ele pegou no copo da cerveja e levantou-o numa sugestão de brinde. Brindámos em silêncio. A quê, cada um deixou a resposta para si. Há momentos que não precisam de palavras. Basta o significado que fica da troca de um olhar entre amigos.

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