O Evangelho das Enguias

Salvador Peres

O Mar dos Sargaços é um mar interior, sem fronteiras terrestres. É delimitado por quatro fortes correntes: a oeste, pela Corrente do Golfo; a norte, pela deriva do Atlântico Norte; a leste, pela Corrente das Canárias e, a sul, pela Corrente Equatorial do Norte. São cinco milhões de quilómetros quadrados de mar, que se movimenta num imenso redemoinho, dentro das correntes que o delimitam.

É aqui, neste mar estranho e misterioso, que a enguia-europeia, a Anguilla anguilla nasce. É nesse mar que, durante a Primavera, as enguias sexualmente maduras acasalam, põem e fecundam os seus ovos.  É lá, naquele lugar improvável, que surgem, no seu primeiro estádio, com um corpo parecido com uma folha de salgueiro, as larvas de enguia. E é de lá que esses seres frágeis, minúsculos e praticamente transparentes, dão início à sua viagem, levados pela Corrente do Golfo, percorrendo milhares de quilómetros através do Atlântico em direcção às costas da Europa, numa jornada que pode durar três anos.

Ao atingir o litoral europeu, ocorre o segundo estádio da sua vida: a enguia sofre a sua primeira metamorfose, transforma-se em enguia-de-vidro e migra para os rios e estuários, adaptando-se a um ambiente de água doce. É já neste novo ambiente que ocorre o terceiro estádio da enguia, uma nova metamorfose que a transforma em enguia dourada. Agora já não um ser frágil, mas um bem distinto, forte e resistente.

O grande mistério da enguia começa aqui. Num qualquer momento da sua vida – uma enguia dourada que consiga sobreviver a doenças e acidentes pode viver até aos cinquenta anos -, a enguia decide reproduzir-se. A partir desse momento, a enguia começa a migrar na direcção do Mar dos Sargaços, o lugar onde nasceu, sofrendo a metamorfose final, o corpo enche-se de ovas e sémen e transforma-se em enguia prateada, o seu derradeiro estádio de vida.

Uma vez chegada ao Mar dos Sargaços, depois de percorrer até quinhentos quilómetros por dia, muitas vezes a mil metros de profundidade, a enguia cumpre, finalmente, o seu desígnio: fertiliza os ovos e morre.

Esta história extraordinária, narrada num livro de rara sensibilidade e beleza, “O Evangelho das Enguias”, do escritor sueco Patrik Svensson, fala-nos de um dos maiores mistérios do universo animal. O que leva um ser minúsculo, nascido num mar interior, a fazer uma viagem oceânica de milhares de quilómetros até à costa europeia? E o que o faz decidir-se a voltar ao lugar onde nasceu? E como encontra o caminho de volta?

Estas e outras perguntas, muitas delas ainda sem explicação, a despeito dos esforços da ciência, ao longo de centenas de anos, para encontrar respostas, convergem nas grandes interrogações que desafiam a humanidade. Quem somos? O que nos move? Para onde vamos?

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