Salvador Peres
Ninguém sabe ao certo quem foi o autor do mundo em que vivemos: se Deus, se o acaso, ou outra forma ou força qualquer. Pouco importa, se a Arrábida foi criada e
existe, e está, felizmente, muito para além de todas as incertezas, angústias e polémicas da criação. A Arrábida está ali, ao alcance dos nossos sentidos.
Sou natural de Setúbal e habituei-me à presença da Serra da Arrábida como se ele fosse parte integrante de minha própria individualidade. Aquela forma inconfundível,
que se casa com o Estuário do Sado na sua junção com o Atlântico, faz parte de um universo muito nosso. É um património colectivo, não apenas pela sua clara
importância como recurso natural, mas, também, pela sua componente cultural e mística.
Por essa Serra acima andei, nos meus tempos de escuteiro, por montes e vales, embrenhado na profusa e, às vezes, quase impenetrável vegetação, respirando aquele
ar insubstituível, misto de odores secretos e exóticos que emanam do seu manto florestal. Caminhei, vezes sem conta, por aqueles lugares de eleição, onde o Homem
se reencontra com a sua própria natureza.
É um lugar único, irrepetível e inimitável. Está ali há tempos imemoriais, quase intocado, até há bem pouco tempo. A ocupação humana, a que quase nada escapa,
rodeia-o e aperta-o num cerco, que só não fecha completamente, porque a sul faz fronteira com a imensidão do mar.
A geração a que pertenço cresceu, amadureceu, ganhou consciência crítica relativamente ao mundo e a todas as coisas que o compõem, numa altura em que a
problemática ambiental começava a ser encarada com angústia. A humanidade despertava para uma realidade inquietante. A natureza reagia epidermicamente à
acção predadora do Homem.
Movido por este súbito despertar, por esta inesperada ameaça a elementos tão fundamentais para a nossa sobrevivência, como o mar, os rios e as florestas, toda uma
geração que se empenhou em lutar por este bem comum, que a desaparecer, arrastaria irremediavelmente consigo o causador da sua destruição: o Homem.
Em Setúbal, como noutros locais, surgiram movimentos espontâneos de defesa do ambiente: o Núcleo de Setúbal da Liga para a Protecção da Natureza, o Setúbal Verde, a Quercus… Antes, já despertas e alertadas as consciências para o perigo iminente que pendia sobre a nossa região, havia sido criado o guardião da Serra: o Parque Natural da Arrábida, entidade sobre quem recaiu a responsabilidade de zelar pela defesa e valorização daquele espaço natural.
A actividade de grupos ecologistas como o Setúbal Verde, fruto de tempos algo ingénuos, mas de uma pureza que nunca mais foi possível recuperar, foi, sem dúvida,
determinante. Sem a componente política que os grupos ambientalistas hoje detêm; sem a força dos “lobbies” que agora se fazem sentir, o movimento ecologista do final
dos anos setenta, do qual o Setúbal Verde fez, entre outros, parte, deu, na sua simplicidade, um forte impulso ao movimento ambientalista em Portugal.
Idealistas, virados para a procura de um modelo de sociedade onde o Homem e a Natureza pudessem coexistir pacificamente, sem, contudo, pôr em causa o
desenvolvimento da sociedade, nem a aspiração humana de procurar continuamente adequar o espaço às suas necessidades vitais, os velhos movimentos ecologistas foram pioneiros de uma forma nova de olhar o mundo.
Hoje, muitos dos que viveram e deram forma às ideias e às lutas do passado, estão em lugares de decisão política e social. Assumem-se como protagonistas de decisões,
pesando sobre eles o fardo difícil, e não poucas vezes incómodo, de gerir espaços que no passado lograram defender como cidadãos.
Pela primeira vez de cruzam, num mesmo olhar, antigos defensores de uma sociedade ambientalmente pura, e actuais gestores que perfilham de uma filosofia de sociedade obrigatoriamente mais prosaica, mais vocacionada para gerir o precário equilíbrio natural resultante da ocupação e actividade humana, mas nem por isso menos entusiasta e empenhada.
A esses homens, qua amam a Serra e o Rio e que, com a sua acção, têm vindo a preservar os espaços fundamentais da tentação predadora dos homens, eu deixo a
minha sincera homenagem. O Rio e a Serra são bons conselheiros. Quem tenha tido o privilégio de respirar os aromas que deles emanam jamais poderá ficar indiferente à sua beleza e importância. Que o digam poetas e místicos que por lá passaram e se inspiraram para versos e prosas de grande humanidade, pureza e intensidade.
Ninguém sabe ao certo de quanto tempo dispõe o mundo em que vivemos: um milénio, um milhão de anos… Pouco importa, se a Arrábida continuar a ser para o Homem aquilo que sempre foi: um lenitivo para os sentidos, uma fonte inesgotável de inspiração poética e um lugar privilegiado para o encontro com a parte do sagrado que vai persistindo em nós.