Firmino e o galo…

Dir-se-ia que, quase religiosamente, o Firmino (nome fictício) entrava de manhã ao serviço sempre para lá da hora limite consentida pelo chamado horário flexível, se bem me recordo as 9:45. Além do atraso, chegava invariavelmente de mau humor e semblante carrancudo. Enquanto muitos se interrogavam como justificaria os atrasos, o único que, intimamente, se regozijava com isso, e lamentava até que não fossem maiores, era o seu colega de gabinete, de seu nome Junqueiro (nome também fictício), já que o clima de guerra fria entre ambos era dominante.

Com efeito, ao longo dos dias raramente trocavam palavra, e quando isso ia além de alguns murmúrios, o Junqueiro, que estava uns furos abaixo na corpulência, no volume da voz, na antiguidade e na idade, acabava sempre à beira de um ataque de nervos que o levava a incendiar sucessivos cigarros, ele que nem fumava habitualmente.

Diga-se que os atrasos do Firmino em nada prejudicavam ninguém, pois a sua principal tarefa por esse tempo, à beira da reforma, era preencher diariamente uns minúsculos retângulos de papel, recortados cuidadosamente, com os números do totoloto (o euromilhões e até o euro ainda não existiam), introduzi-los num copo que ia virando sobre a secretária para, com os que saíam, ir fazendo cruzes nas resmas de matrizes que sempre tinha e que, irritado, amarrotava ao menor engano. Penso que, se ele alguma vez ganhasse, continuaria este viciante ritual diário, indiferente a tudo e a todos aqueles que, por força das circunstâncias, visitavam, embora raramente, o gabinete que partilhava com o Junqueiro.

Quem mais sofria com os atrasos do Firmino era o seu chefe, ferido entre o temor pelo conhecido mau génio deste e a imagem de uma autoridade débil, até de tibieza, até que num fim de manhã, vencidas mil hesitações e insuflando-se do seu estatuto, assomou à porta do gabinete do Firmino e interpelou-o, num fio de voz, com aquela frase tão característica: “Senhor Firmino, pode dar um salto ao meu gabinete?” Frase que teve de repetir em voz mais densa, uma vez que o Firmino ia perdendo a capacidade auditiva que, aliás, mesmo quando ouvia bem, nunca fora famosa.

O pesado Firmino, que não era nada de saltos, apanhado desprevenido, ficou em sobressalto e lá seguiu em modo sombra do chefe, interrogando-se mudamente sobre a razão de tão insólito “convite”. Confrontado então, titubeantemente, com os seus recorrentes atrasos e, ainda segundo o hierarca, com “o mau exemplo aos colegas”, ficou desvendada, finalmente, em mastigadas palavras, a intrigante razão dos mesmos.

“É um maldito galo que está sempre a cantar num quintal das traseiras e não me deixa dormir…”, tartamudeou o Firmino na sua voz empastada e grave, caso em que, pelos vistos, a sua surdez de nada lhe valia. “Se pudesse, degolava-o”, acrescentou ainda. O chefe embatucou e, depois de recuperar do espanto, recomendou-lhe suavemente para passar a ser pontual. Para hilaridade geral, a história espalhou-se rapidamente com proveniência incerta, talvez a dar razão ao velho aforismo de que “as paredes têm ouvidos”, portas incluídas.

Ao que constou, os atrasos prosseguiram, o que significa que o emplumado cantor continuou de boa saúde e a ensaiar os seus gorjeios, até que o Firmino, pouco tempo decorrido, se reformou.

José Rogeiro

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