Salvador Peres
O relógio da torre da Lota tinha batido as dez da noite. O Rio, empurrado para a nascente pela enchente imparável que subia do oceano, refulgia, com as luzes da cidade reflectidas nas suas águas tranquilas. O ar fresco e húmido trazia consigo os odores da Primavera que chegara na véspera. Algumas pessoas calcorreavam, em silêncio, a frente ribeirinha. Num passo ligeiramente acima do ritmo de passeio, Leandro caminhava, pensativo. À sua mão esquerda, o rio sussurrava, num borbulhar encantatório, a doce cantilena da enchente. Lá longe, maciça, difusa no breu da noite, a imponência da cordilheira da Serra.
Caminhando pela beira do Rio, Leandro revisitava o seu mais marcante lugar de memória. Esse lugar, uma passagem empedrada junto à muralha que sustem o Rio, e que, anos atrás, sofrera alterações fruto de uma obra do porto, era tudo quanto restava de um passado que começava a desvanecer-se na imparável erosão do tempo. No essencial, tudo continuava como sempre estivera. Só lá não estavam duas pessoas, perdidas que andavam, há muitos e muitos anos, cumprindo, cada qual, o seu destino, na errância da vida. O que ali acontecera, muitos anos atrás, escoara-se pelo funil do tempo e perdera-se para sempre. Restavam as memórias de Leandro. As duas almas que se uniram naquele local, acreditando estar a gerar algo de eterno e indestrutível, há muito que se haviam separado. E a comunicação entre elas, forte e vibrante, que no passado se processava como que por magia, cessara por completo.
Leandro olhou para o negrume azul escuro do céu nocturno, onde estrelas distantes pestanejavam a distâncias abissais, e meditou que todos elas estavam ali naquele tempo que agora rememorava. Que todos elas tinham sido testemunhas daquele milagre do acaso que unira aquelas duas pessoas. Tal como as estrelas, parte ínfima de infinitas galáxias distantes, aqueles dois seres, que experienciaram uma formidável paixão, num fogacho intenso e deslumbrante, afastavam-se, agora, a uma velocidade indizível, para o vazio e o esquecimento.
O relógio da torre da Lota marcava, agora, dez e trinta da noite. O Rio, impelido para montante, pela corrente infatigável do oceano, resplandecia. Leandro quedou-se ali, mirando o firmamento, sorvendo, num pasmado encantamento, o intenso aroma da maresia. E lá longe, muito longe, cintilava o Cruzeiro do Sul, testemunha eterna daquelas fugidias recordações.