Salvador Peres
O advento dos relógios electrónicos, dos telemóveis e outras geringonças horárias com mostradores que deixam cair as horas minuto a minuto, trouxe à percepção da vida uma diferente perspectiva do tempo que passa. A cronologia transfigurou-se num saltitar regulado pela ligação da maquineta a um mecanismo oculto, sem rodas dentadas, rodízios, molas ou pêndulos, que só dá as horas em intervalos de minuto. Raramente alguém acompanha a passagem de um minuto a outro, a não ser que se disponha a ficar, até sessenta segundos, a fixar o relógio até que, tic!: a um minuto sucede outro minuto.
Em não fixando o mostrador da caranguejola horária, o consumidor de tempo nem dá pela passagem do dito. O tempo passa a ser uma coisa imaterial e subjectiva. Mas não é mesmo isso que o tempo é, em querendo nós que se assuma como coisa? Talvez, e, se sim, vem mesmo a talhe de foice para o que descrevo a seguir.
Veio-me ao pensamento esta reflexão ociosa, quando, pelo meio da tarde, olhei para as horas e verifiquei, não sem algum alvoroço, que o meu relógio tem ponteiro dos segundos. O espanto resulta do gesto automático a que nos habituámos, que é ver as horas sempre que consultamos alguma coisa no telemóvel. E raramente olhamos para o relógio de pulso, aqueles que ainda o usam, como é o meu caso.
Diz um estudo que li por aí que tiramos o telemóvel do bolso umas 200 vezes por dia. São 200 vezes que o mostrador horário incorporado nos mostra as horas. Duzentas vezes que constatamos a aparente imobilidade do tempo, porque, no golpe de vista ao mostrador do telemóvel só vemos um número fixo, diferente de cada vez que olhamos, é certo, mas fixo, sempre fixo, como se o tempo estivesse suspenso naqueles dígitos.
Quando, pelo meio da tarde, consultei as horas no meu relógio, e acompanhei o ponteiro no seu incessante e infinito rodopio pelo mostrador, engolindo um a um infinitos minutos, dei por mim a contar cada segundo. E o tempo assumiu, subitamente, um significado material e objectivo.
Não sei como resolver esta aparente contradição entre as horas que vejo no telemóvel e as que vislumbro no meu relógio de pulso. Tão-pouco sei qual a essência do tempo, de onde veio, se existe ou não, ou se foi apenas inventado para medirmos a finitude das coisas. Uma coisa, porém, me parece sensata: se querem viver para sempre, suspensos no tempo, nunca usem um relógio com ponteiro dos segundos.
Salvador Peres
Foto: Navegando no Tempo – Eduardo Carqueijeiro