A  VELHICE

 António Lobo Antunes

“Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os  Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a  Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos  do que eu. Comecei a gostar de sopa de nabiças. A apetecer-me voltar  mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas  imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os  meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me  preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os  jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o  Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas, achava peitorais.

 

Se  calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no  outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do  cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. Quando  der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a  troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o  meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que  me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de  urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos  polares.

 

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê  conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda  gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas,  tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me  comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne  de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de  escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito.

 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que  conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.”

 

(Quinto livro de crónicas, Edição D. Quixote)

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