Salvador Peres
Flávio vendeu o televisor numa lojeca na esquina da rua do Mercado, um aparelho que lhe tinha custado uma pipa de massa. O lojista deu-lhe quase nada pela TV, coisa que a Flávio não fez mossa. O que ele queria mesmo era livrar-se daquele miasma e não pensar mais no assunto. Saiu da loja a pensar que lá em casa nunca mais entrariam aqueles políticos de meia-tigela, mais a multidão de comentadores que os promoviam, enalteciam ou demonizavam. Isto para já não falar dos canais que exploravam, sem tento nem vergonha, a miséria e desgraça alheias. Já não se aguentava. Estava farto. Claro está que toda aquela gente e todos aqueles conteúdos espreitavam nos televisores que se espalhavam por toda a parte, como uma praga, em cafés, restaurantes, centros comerciais, consultórios, ginásios, aeroportos…. Dificilmente escaparia, a não ser que deixasse de frequentar todos esses locais, o que se afigurava impossível, dada a profusão de écrans invadindo os mais inimagináveis espaços, posicionados em todo os ângulos disponíveis. Flávio já tinha, meses antes, saído das redes sociais, onde chegara a somar uns milhares de “amigos”. E nunca, a despeito de muito aconselhado por alguns próximos, chegara a entrar noutros caixotes do lixo, como o tik-tok e semelhantes. A namorada de Flávio, a Matilde, achou que ele estava a ficar lelé da cuca, insano e insociável, e deixou-o. Os amigos mais chegados, não os do Facebook, mas os verdadeiros, também reconheceram que havia ali algum exagero, talvez uma pontinha de insânia e começaram, à cautela, a afastar-se dele.
Contudo, passados tempos desde que se livrara do ecrã e da influência das redes sociais, Flávio descobriu que respirava melhor, vivia melhor e que o mundo estava a tornar-se de novo um lugar frequentável. Já não aquele mundo formatado para consumo das massas que os media expeliam, como um vómito, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Mas o mundo real, com todas as virtudes e defeitos da condição humana, com todas as sortes e azares da vida, com todos os caprichos da natureza. A pouco e pouco, os amigos, não os do Facebook, mas os verdadeiros, voltaram a aproximar-se, porque, como tudo na vida, as coisas, como patenteou Pessoa, primeiro estranham-se, depois entranham-se. E a presumível insânia de Flávio passou de bizarra a usual. É a vida. A Matilde é que não voltou, coisa que a Flávio não fez mossa. Como se costuma dizer, às vezes, há males que vêm por bem.