A inquietação acompanha-me desde que me lembro. Desconfio que é o que me faz mover. Mas não tenho a certeza, que é coisa que nunca tive a respeito seja do que for. Nunca me descobri tranquilo. Os homens da oficina onde trabalhei, ainda muito jovem, não eram gente tranquila. Brutos e primários, mas, também, frontais e transparentes, era assim que se mostravam. Nada de gente baça e cínica, com medo de dizer o que lhes ia na alma. Não sei se eram inquietos ou simplesmente ingénuos e ignorantes. Na altura, não tinha capacidade para pensar sobre isso. Hoje, com tanto caminho já andado, seria tempo perdido e eu não tenho tempo a perder com tais cogitações.
Mas aprendi algo com eles. Medrei na inquietação, deitei corpo na agitação da vida e vivo no jorro imparável do quotidiano, levado pela força implacável da corrente. Vejo inquietação em todo o lado e isso não me surpreende nem me assusta. É a vida a expressar-se, primitiva, pujante, indiferente a credos, ideologias, filosofias, decretos, leis e ordens executivas. A fraqueza, às vezes, acomete-me. E, por momentos, quando me confronto com a aparente desordem do mundo, sou levado a juntar-me ao coro dos que dizem que as coisas estão cada vez piores e profetizam o fim dos tempos. Mas não é cadeira onde fique muito tempo sentado nem horizonte onde fixe o olhar. Perante o queixume estéril e o estupor paralisante, só vejo uma saída: andar para a frente. Não que tenha qualquer ilusão a respeito de poder mudar o mundo. Sigo em frente, porque andar é viver.
É a respiração do mundo e a forma instintiva como reagimos a ela que me desperta a curiosidade. Nada de singular vejo no pavor com que encaramos o pulsar e a turbulência da vida. Estranho seria se não nos espantássemos com a força bruta da natureza e não temêssemos a sua imprevisibilidade. A inquietação espreita no temor e reina no desconhecido. Temer é uma forma de sobreviver. Inquietamo-nos no susto do mundo para provar que existimos, espantando os fantasmas da nossa finitude. A inquietação faz-nos sair de nós próprios, sermos um outro num corpo em desequilíbrio que suspende o tempo. E é nesse tempo suspenso, inquietos até à medula, que tudo parece possível, que abrimos a porta à fábrica dos milagres: fui eu que fiz isto?
A inquietação acompanha-me desde que me lembro. Não me espanta nem me assusta. Medo, medo, só o de ficar a ver o mundo sentado no sofá da sala, dedilhando, alheado e inerme, o comando da televisão.