Salvador Peres
Comprei, em Novembro de 1983, a edição do Círculo de Leitores de “Ulisses”, de James Joyce. Nesta edição, utilizou-se a tradução brasileira de António Houaiss, considerada a mais perfeita e a que mais se aproxima do texto original de Joyce. O livro foi escrito entre 1914 e 1921 e publicado em 1922. A edição do Círculo de Leitores é de Agosto de 1983. O livro tem 550 páginas, apenas porque a editora optou por editar o livro num corpo de letra pequeno para poupar no papel. Porque na edição em português de Portugal, por exemplo, da editora Relógio d’ Água, traduzida por Jorge Carvalho, a editora não poupou no papel e o livro espraia-se por 752 páginas. Há edições com 900 páginas, em letras bem grandinhas para quem já vai falhando a vista.
Fui lendo a edição do Círculo de Leitores e preparo-me, agora, para ler a edição da Relógio d’ Água. Em 2008, quando publiquei o meu livro de contos “A Travessa dos Bispos Escarlates e Outras Histórias”, eu já antecipava que haveria de ler o “Ulisses” numa tradução em português de Portugal. Foi no conto “Um jantar em Azeitão” e começava assim:
Eu andava a reler o Ulisses, de James Joyce, agora, numa versão em português nativo. A experiência anterior, quando meti ombros à leitura numa tradução de português do Brasil, foi uma jornada cansativa e frustrante, que me deixou exausto. Ulisses, trata da odisseia de Leopold Bloom, um judeu irlandês, que sai de casa, a 16 de Junho de 1904, para comprar os rins que a mulher apreciava comer ao pequeno-almoço, ir aos correios buscar as cartas de amor da amada, consumar as suas obrigações de angariador de publicidade e acompanhar o funeral de um velho conhecido. Parece coisa simples e sem assunto. Mas é puro engano. Mergulhar na obra de Joyce é penetrar num labirinto orgânico, com vida própria, que cresce, se ramifica e se multiplica, na exacta medida da nossa perplexidade e desorientação. O senhor Bloom, tal como Ulisses através dos mares, vai andar à deriva pela cidade de Dublin. Uma metáfora subtil que se vai erigindo numa miríade de pormenores aparentemente comezinhos. É a vida real que ali encontramos. Não a vida idealizada, cheia de momentos de grande significado, que trajamos para evidenciar o significado único e especial das nossas vivências.
Agora, ombros metidos na difícil tarefa de reler o “Ulisses”, traduzido para português nativo, e no meio de muitas outras leituras que não quero deixar de fazer, vou seguir o conselho que Miguel Esteves Cardoso deixou plasmado numa das suas sábias crónicas: ler quatro páginas por dia, que, segundo o MEC, seria a cadência diária de escrita de Joyce. E deixar-me assombrar e divertir com aquela escrita difícil, densa, exasperante, mas muito divertida e diferente de qualquer coisa que já tenha lido até hoje. Não é por acaso que “Ulisses” é considerado como tendo atingido a suprema arte da escrita: a obra-prima absoluta.